[relato enviado por email]
Tinha 27 anos. Estava num relacionamento estável, terminando a faculdade, realizando um projeto pessoal grande e oneroso, que estava saindo integralmente do meu bolso. Estava feliz, apaixonada pelo meu namorado e muito feliz com meu trabalho autoral. Tomava pílula há 6 anos, sempre alternando quatro meses de pílula e um de pausa. Minha ultima consulta com ginecologista tinha sido três meses antes. Na ocasião, ela me disse que caso eu achasse que era hora de engravidar, faríamos uma preparação com ácido fólico e vitaminas, para que o processo fosse mais rápido. Com tantos anos de pílula seria difícil engravidar assim de cara. Um engano. Minha menstruação não veio na pausa da pílula. Fiquei preocupada, mas não o suficiente, não acreditava que poderia estar grávida. Em duas semanas comecei a sentir muito cansaço, sono e fome. Muito mais do que jamais senti. Achei que era ansiedade, coisas normais de um período de dedicação intensa ao meu projeto. Passou mais um mês e tomei coragem de fazer o exame de farmácia. três exames positivos. Fiquei em pânico. Todas as possibilidades eram ruins: ter era impossível, não ter além de proibido, era como entrar pra um grupo de pessoas marginalizadas. Um nebuloso grupo de mulheres clandestinas. Jurava que nunca estaria nesse grupo. Torcia para que jamais estivesse. Procurei ajuda de amigas e conhecidas, e entrei pra rede invisível de apoio mútuo entre mulheres. Descobri uma clínica em uma outra cidade, e percebi que seria impossível arcar com os custos do procedimento. Pedi dinheiro emprestado. Meu namorado também. Somamos forças, abri mão do meu projeto e fui para essa cidade com o coração na boca me tornar oficialmente clandestina. A consulta e o procedimento custavam ao todo R$*****. Era um valor que nunca havia passado assim livremente na minha conta bancária, a não ser que fossem salário de dois meses. A consulta foi ótima, a equipe médica super atenciosa. Conversamos sobre o absurdo da privação de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Me senti segura.
Fui ao banco sacar o dinheiro. Era muito dinheiro para sair em mãos. Na hora de pagar, entrei numa sala fechada e tirei o dinheiro em cash, a pessoa o contou na minha frente. Me senti suja. Me senti parte de uma parcela privilegiada da sociedade que pode arcar com suas escolhas, que pode sustentar o moralismo da legislação retrógrada porque se "o bicho pegar" tem pra onde correr. Fiquei triste. Fui encaminhada para o ambulatório onde faria o procedimento. É tipo uma sucção de dentista (eu estava com nove semanas, portanto esse era o método mais seguro). Recebi um remedinho intravenoso pra dormir. Me explicaram que duraria seis minutos o procedimento e que eu dormiria por mais 40 minutos pelo efeito do remédio. Recebi antibióticos e anti-inflamatórios intravenosos. Quando acordei, fiquei deitada mais uma hora e fui muito bem tratada por todos. Fui aconselhada inclusive a beber um vinhozinho no jantar, pois já estava tudo bem agora. Penso que um procedimento ambulatorial seguro e simples não pode ser negado à totalidade de mulheres. Não pode ser trocado por ambulatórios e clinicas igualmente caras, mas que pela falta de fiscalização ou pelo moralismo dos funcionários tratam as mulheres como meros pedaços de carne. Não é justo. Aborto é uma questão de classe. É a classe média e alta que tem escolhas. São as classes baixas e periféricas que ficam expostas a violências, a riscos de saúde e a procedimentos inseguros. Todas nós, no entanto, estamos vivendo na clandestinidade. A luta pela descriminalização do aborto precisa ser uma luta de todas nós, porque não só a clandestinidade é uma violação de direitos. O medo de ser descoberta é uma violência. O tabu de se falar sobre é uma violência. A impossibilidade de conversar sobre isso abertamente é uma violência. Somos violentadas todos os dias. Precisamos falar sobre o aborto, precisamos nos ajudar.
Tinha 27 anos. Estava num relacionamento estável, terminando a faculdade, realizando um projeto pessoal grande e oneroso, que estava saindo integralmente do meu bolso. Estava feliz, apaixonada pelo meu namorado e muito feliz com meu trabalho autoral. Tomava pílula há 6 anos, sempre alternando quatro meses de pílula e um de pausa. Minha ultima consulta com ginecologista tinha sido três meses antes. Na ocasião, ela me disse que caso eu achasse que era hora de engravidar, faríamos uma preparação com ácido fólico e vitaminas, para que o processo fosse mais rápido. Com tantos anos de pílula seria difícil engravidar assim de cara. Um engano. Minha menstruação não veio na pausa da pílula. Fiquei preocupada, mas não o suficiente, não acreditava que poderia estar grávida. Em duas semanas comecei a sentir muito cansaço, sono e fome. Muito mais do que jamais senti. Achei que era ansiedade, coisas normais de um período de dedicação intensa ao meu projeto. Passou mais um mês e tomei coragem de fazer o exame de farmácia. três exames positivos. Fiquei em pânico. Todas as possibilidades eram ruins: ter era impossível, não ter além de proibido, era como entrar pra um grupo de pessoas marginalizadas. Um nebuloso grupo de mulheres clandestinas. Jurava que nunca estaria nesse grupo. Torcia para que jamais estivesse. Procurei ajuda de amigas e conhecidas, e entrei pra rede invisível de apoio mútuo entre mulheres. Descobri uma clínica em uma outra cidade, e percebi que seria impossível arcar com os custos do procedimento. Pedi dinheiro emprestado. Meu namorado também. Somamos forças, abri mão do meu projeto e fui para essa cidade com o coração na boca me tornar oficialmente clandestina. A consulta e o procedimento custavam ao todo R$*****. Era um valor que nunca havia passado assim livremente na minha conta bancária, a não ser que fossem salário de dois meses. A consulta foi ótima, a equipe médica super atenciosa. Conversamos sobre o absurdo da privação de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Me senti segura.
Fui ao banco sacar o dinheiro. Era muito dinheiro para sair em mãos. Na hora de pagar, entrei numa sala fechada e tirei o dinheiro em cash, a pessoa o contou na minha frente. Me senti suja. Me senti parte de uma parcela privilegiada da sociedade que pode arcar com suas escolhas, que pode sustentar o moralismo da legislação retrógrada porque se "o bicho pegar" tem pra onde correr. Fiquei triste. Fui encaminhada para o ambulatório onde faria o procedimento. É tipo uma sucção de dentista (eu estava com nove semanas, portanto esse era o método mais seguro). Recebi um remedinho intravenoso pra dormir. Me explicaram que duraria seis minutos o procedimento e que eu dormiria por mais 40 minutos pelo efeito do remédio. Recebi antibióticos e anti-inflamatórios intravenosos. Quando acordei, fiquei deitada mais uma hora e fui muito bem tratada por todos. Fui aconselhada inclusive a beber um vinhozinho no jantar, pois já estava tudo bem agora. Penso que um procedimento ambulatorial seguro e simples não pode ser negado à totalidade de mulheres. Não pode ser trocado por ambulatórios e clinicas igualmente caras, mas que pela falta de fiscalização ou pelo moralismo dos funcionários tratam as mulheres como meros pedaços de carne. Não é justo. Aborto é uma questão de classe. É a classe média e alta que tem escolhas. São as classes baixas e periféricas que ficam expostas a violências, a riscos de saúde e a procedimentos inseguros. Todas nós, no entanto, estamos vivendo na clandestinidade. A luta pela descriminalização do aborto precisa ser uma luta de todas nós, porque não só a clandestinidade é uma violação de direitos. O medo de ser descoberta é uma violência. O tabu de se falar sobre é uma violência. A impossibilidade de conversar sobre isso abertamente é uma violência. Somos violentadas todos os dias. Precisamos falar sobre o aborto, precisamos nos ajudar.